É preciso restabelecer o pagamento do benefício por pessoa para manter efetividade do programa
Shireen Mahdi
Folha de S. Paulo
A trajetória recente dos programas de transferência condicional de renda do Brasil traz uma série de lições valiosas para o futuro. Durante a pandemia e o período eleitoral, os esses programas mostraram um crescimento substancial em seu alcance e em sua generosidade. O Auxílio Emergencial atingiu 67 milhões de beneficiários e o valor dos benefícios superou R$ 600 por família. Posteriormente, o Auxílio Brasil, o Benefício Extraordinário e o Complementar foram lançados, e a cobertura chegou a atingir 21 milhões de famílias em outubro de 2022, com um benefício padrão de R$ 600. As alternâncias ocorridas nesse período resultaram em um aumento significativo dos recursos, com gastos em transferências sociais subindo de 0,5% do PIB em 2019, para 4% em 2020 e 1,2% no final de 2022.
Esse rápido crescimento nos gastos trouxe dois desafios importantes. Primeiro, afetou a implementação de serviços complementares que impulsionam a eficácia das transferências. A redução nos recursos alocados para o Sistema Unificado da Assistência Social desde 2020 impactou negativamente a capacidade de fornecer suporte às famílias vulneráveis, comprometendo a abordagem multidimensional do programa. Segundo, e mais importante, a mudança para transferências por família, desconsiderando a composição familiar, gerou desigualdades no atendimento e reações comportamentais indesejáveis. As transferências médias por pessoa aumentaram para famílias pequenas e diminuíram para famílias maiores, que são mais suscetíveis à pobreza. Famílias unipessoais receberam, em média, R$ 600 per capita, enquanto famílias de quatro membros receberam, em média, R$ 150 per capita. Isso incentivou o registro de famílias unipessoais no Cadastro Único, com aumentos significativos observados precisamente após o BEx e BComp serem lançados. Os problemas de desenho somados ao contexto de interrupção de serviços da pandemia, levaram a um acúmulo de atualizações pendentes no Cadastro Único, fragilizando ainda mais o registro administrativo.
Diante desses desafios, o governo reagiu, implementando uma série de ações como resposta. O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome lançou o novo programa Bolsa Família e promoveu o fortalecimento do Cadastro Único. Além disso, o Ministério da Fazenda também está atuando, por meio de iniciativas fiscais que visam aumentar o espaço de serviços sociais complementares, bem como a reformulação do sistema tributário, visando alcançar uma distribuição mais equitativa.
Estas mudanças são um passo na direção correta, e levam tempo para serem assimiladas pelo sistema. Contudo, o novo desenho do Bolsa Família é uma solução parcial: ainda há margem para ajustes adicionais que melhorem o impacto e a eficácia do gasto social.
É preciso restabelecer integralmente o pagamento do benefício per capita. Essa transição pode ser considerada desafiadora politicamente, uma vez que existe uma preocupação legítima de que famílias menores sejam afetadas negativamente por esse novo desenho. No entanto, é importante ponderar que o desenho atual está gerando, além do desequilíbrio citado, perdedores “invisíveis” representados pelas famílias na lista de espera do programa. Essa nova proposta de desenho resultaria em uma economia de recursos que possibilitaria a inclusão de famílias no programa e ampliação dos serviços complementares, dentro do orçamento atual.
Mantendo-se como uma referência global em inovação na proteção social, o Bolsa Família tem agora uma oportunidade de mostrar ao mundo como programas desta natureza devem ser ajustados ao longo do tempo para ter uma vida longa e continuar beneficiando a população, como tem feito já por duas décadas.
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Esta coluna foi escrita em colaboração com meus colegas do Banco Mundial Josefina Posadas, economista sênior, Tiago Falcão Silva, especialista sênior em proteção social, e Bruna Cricci, profissional júnior associado.