Os programas sociais fazem com que as pessoas deixem de trabalhar? Os possíveis desestímulos ao trabalho causados por programas sociais povoam o imaginário de cidadãos e formuladores de políticas públicas. Os programas de transferência de renda são os que geram maiores preocupações nesse sentido. Mas o fenômeno, batizado no Brasil como “efeito preguiça”, foi objeto de centenas de estudos e hoje está praticamente descartado em virtude das evidências colhidas no Brasil e ao redor do globo. Laureado com o prêmio Nobel de Economia em 2019, Abhijit V. Benerjee e seus colegas se debruçaram sobre o tema e foram categóricos: não existe evidência sistemática global de que programas de transferência de renda desencorajem o trabalho.
Olhemos o caso do Bolsa Família. O programa não tem, em seu desenho, mecanismos de desestímulo ao trabalho. Pelo contrário, a estrutura de benefícios do programa e sua “regra de permanência” permitem que as rendas adicionais percebidas pelas famílias não resultem em reduções significativas no valor dos benefícios ou na exclusão imediata do Programa. Portanto, o programa estimula a busca da renda adicional via trabalho. Além disso, o mecanismo do Retorno Garantido permite que famílias saiam voluntariamente do programa e retornem sem barreiras de acesso, o que gera segurança para que os beneficiários que melhoram de renda se arrisquem no mundo do trabalho com a certeza de que poderão contar com uma rede de proteção, caso o emprego ou o negócio não tenham sucesso.
Os dados da PNAD contínua de 2019 trazem novos elementos para esse debate. A imensa maioria das famílias do Bolsa Família trabalham ou estão disponíveis para trabalhar. Dos beneficiários do programa em idade ativa, 57% estavam empregados e 13% buscavam uma colocação. A maior parte da renda dessas famílias (70%) provém do trabalho. O Bolsa Família é uma ajuda para essas famílias, mas não é tudo: para 71% das famílias o benefício do programa representava menos de 25% da renda familiar.
Mesmo trabalhando e obtendo renda do trabalho, as famílias permanecem em um patamar muito baixo de renda, caracterizando seu status como “pobres trabalhadores”. A informalidade, o desemprego e o desalento predominam nesse grupo. Dentre os empregados e autônomos do Programa, em 2019, apenas 27% eram formais e, portanto, tinham acesso aos mecanismos de proteção social contributivos. O desemprego era uma realidade para os beneficiários: 13% se encontravam nesta situação. Com isso, do total de desempregados brasileiros em 2019, 25% recebiam Bolsa Família, percentual maior do que o dos protegidos pelo Seguro Desemprego no mesmo ano, 18%. Para eles, o benefício monetário do Bolsa Família é pequeno, mas estável. Isso faz toda a diferença em um contexto de grande volatilidade de renda e inserção precária no mundo do trabalho.
Além disso, é verdade que uma proporção importante de beneficiários do Bolsa Família em idade ativa ficou fora do mercado de trabalho (30%). É importante observar que se trata de um fenômeno dominado por gênero e idade, e ampliado na zona rural. Mesmo com níveis educacionais mais altos, o percentual de mulheres nessa situação é significativamente maior do que o de homens (34.4% versus 10.2%). Na zona rural o fenômeno é ainda mais acentuado, com 37% fora da população economicamente ativa. Os motivos para não buscar trabalho se concentram em dois fatores. Afazeres domésticos e deveres relacionados a cuidados são apontados por 35% das mulheres como limitantes à busca por trabalho. Dentre os homens na zona rural, destaca-se a falta de emprego na região como fator determinante de desestímulo para 59%.
A compreensão dos verdadeiros desafios para a melhoria da inclusão produtiva dos mais pobres, aqui representados pelos beneficiários do Bolsa Família, traz uma série de implicações para a formulação de políticas públicas. A evidência internacional mostra que os estímulos à busca de emprego não são suficientes e têm que ser combinados com programas ativos de fomento ao emprego, como a intermediação laboral, a qualificação em habilidades básicas e técnicas voltada aos setores com demanda laboral acertada, e também o apoio ao pequeno negócio e ao empreendedorismo. Para ser verdadeiramente efetivas, essas políticas devem ser customizadas para a realidade dos pobres trabalhadores e para as potencialidades locais (distribuição no território, infraestrutura existente, organização comunitária). Para a melhor inserção das mulheres, adicionalmente há que se garantir serviços de cuidado para crianças e idosos.
Atenção especial deve ser dada aos jovens. O período de transição escola-trabalho é sempre complexo. Os mecanismos de manutenção do jovem na escola até a finalização do ciclo escolar e obtenção do certificado de conclusão, tão valorizado pelo mercado, são essenciais. Isso, combinado a políticas mais abrangentes de estágio, aprendizagem e capacitação no emprego, podem ajudar a reduzir o desalento laboral, que entre os jovens alcança 35%.
A gigantesca crise gerada pela COVID 19 afetou de maneira profunda os mais pobres. O aumento na taxa de desemprego e os permanentes riscos de contaminação trazem inseguranças adicionais e ampliação da pobreza. A expansão da cobertura do Bolsa Família anunciada pelo Governo, em abril de 2020, e a implementação do Auxílio Emergencial em suas diversas rodadas foram mecanismos importantes de mitigação dos efeitos imediatos da crise. Mas essas medidas podem ser complementadas também por políticas diretas de emprego, como as iniciativas de emprego público temporário, especialmente em regiões com menor dinamismo econômico.
No entanto, há que se pensar em uma agenda para o futuro. Garantir que esse processo de recuperação da economia seja resiliente e inclusivo é o grande desafio.
Esta coluna foi escrita em colaboração com Tiago Falcão e Katharina Fietz, consultores do Banco Mundial.