A redução do fosso digital permitirá alavancar o potencial da revolução digital e fortalecer o governo eletrônico
O Brasil está entre os países líderes no mundo para a transformação digital do governo segundo o E-Government Survey 2020 das Nações Unidas. Esse desempenho reflete os avanços decorrentes da implementação da Estratégia de Governo Digital, assim como da aceleração do processo de transformação digital impulsionado pela Covid-19. De fato, a pandemia revelou o papel central da conectividade e dos serviços digitais para garantir a resiliência das interações entre as populações, os governos e as empresas, bem como a mudança necessária para teletrabalho, educação remota, telessaúde e, em geral, garantir a continuidade dos negócios e a prestação de serviços públicos.
No entanto, os resultados positivos não devem minimizar as disparidades existentes entre os diferentes sub-indicadores da pesquisa. O índice de serviços online está acima da média regional, mas o índice de infraestrutura de telecomunicações não ultrapassa a média da região. Por exemplo, o acesso a banda larga fixa residencial (49%) está abaixo da média da OCDE (84%).
Na realidade, o fosso digital segue sendo uma deficiência estrutural do ecossistema digital nacional. Apesar de recentes avanços, o CETIC (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação) mostra, na pesquisa TIC Domicílios 2019, que ainda 28% dos domicílios brasileiros, ou seja, 47 milhões de pessoas não têm acesso à internet. Portanto, um quarto da população permanece excluída dos potenciais benefícios da revolução digital.
Esse fosso digital também reflete e reforça as desigualdades no país. Os números falam por si. Enquanto 99% das famílias da classe A estão conectadas, apenas 57% das famílias das classes D e E têm acesso à internet. Da mesma forma, quase 50% das famílias nas áreas rurais não contam com esse acesso, contra 25% nas áreas urbanas. A pesquisa TIC Educação 2019 mostra que só 49% das escolas rurais têm acesso a internet contra 99% das escolas urbanas. Isso reforça gravemente as desigualdades na educação, ainda mais em tempos de pandemia e com a necessidade de depender do ensino remoto para garantir um mínimo de aprendizagem. A garantia de acesso inclusivo e universal é um grande desafio e demandará grandes esforços.
É então essencial para o país investir até atingir a universalização do acesso à internet. O Brasil precisa não só expandir a infraestrutura para cobrir todas as áreas do país e melhorar a velocidade da conectividade para permitir os novos usos da internet, mas também reduzir o custo das conexões para as populações mais vulneráveis e geograficamente distantes. De forma geral, o país deve reforçar as políticas nacionais por meio de uma melhor coordenação entre os diferentes níveis administrativos, fazer ajustes no quadro regulatório e aplicar os mecanismos já existentes para resolver os desafios práticos dessa universalização.
Por mais que o papel do governo seja central, a participação do setor privado é fundamental para diminuir o fosso digital. As políticas públicas devem contribuir para a redução das barreiras de entrada a novos provedores de serviços de telecomunicações, inclusive para facilitar o compartilhamento de infraestrutura. Nesse sentido, o leilão 5G previsto para o início do segundo semestre de 2021 representa um marco importante da cooperação entre atores públicos e privados para a implementação da nova geração das comunicações móveis.
Outro aspecto fundamental é não só a capacidade do governo de disponibilizar serviços públicos online, tal como refletido no E-Government Survey do 2020, mas de viabilizar o acesso a esses serviços. Assim, o lançamento oficial do portal gov.br representa uma etapa importante no fortalecimento do ecossistema digital do governo. Quase quatro mil serviços públicos federais são referenciados no portal e mais de dois mil já são digitalizados e acessíveis online.[1] O governo prevê que poderá oferecer 100% dos serviços públicos federais de forma digital até o final de 2022. O portal traz significativas vantagens tanto para os entes públicos como para os usuários e promete transformar a maneira como o governo interage com a população.
Contudo, existem limitações estruturais no ecossistema da identidade do indivíduo que impedem, junto com a falta de conectividade de banda larga, que o acesso a serviços seja inclusivo e seguro. Por exemplo, 14 milhões de pessoas seguem sem nenhuma prova de identidade e, portanto, excluídas do portal gov.br. Muitos outros só conseguem acessar alguns dos serviços oferecidos, pois dependem das credenciais ao seu dispor, ou seja, das ferramentas que as pessoas têm para comprovar a sua identidade (como o CPF, a Conta de Banco Credenciado ou o certificado digital da ICP-Brasil). A quantidade de serviços acessíveis por um cidadão reflete as desigualdades de acesso à identificação: os serviços que requerem maior confiabilidade são accessíveis apenas pelas pessoas que têm um certificado digital da ICP-Brasil (aproximadamente 2% da população), ou que têm um smartphone e estão cadastrados na base de dados do Tribunal Superior Eleitoral. Segundo, permanecem falhas críticas de segurança, com repetidos vazamentos de dados pessoais inclusive a exposição na deep web de 223 milhões de CPFs de pessoas vivas e falecidas em janeiro de 2021.
Em palavras simples, é fundamental garantir a universalização de uma identidade segura para que cada cidadão possa acessar os serviços públicos. Nesse sentido, o governo iniciou reformas. Porém, ainda é necessária uma visão nacional ampla e de longo prazo para que a identificação digital seja a chave universal para o amplo acesso aos serviços, para a troca de informações com entidades públicas e privadas e para a proteção dos dados pessoais.
Reduzir o fosso digital é um dever do governo. Cada indivíduo no país, onde quer que esteja e independentemente de sua situação socioeconômica, tem direito a se beneficiar da revolução digital em curso. Além disso, as barreiras que a atual situação sanitária impõe à entrega de serviços obrigam as autoridades a encontrarem alternativas viáveis e inclusivas o quanto antes. Por isso, a universalização do acesso à internet e a credenciais para identificação digital são imprescindíveis.
Esta coluna foi escrita em colaboração com Axel Rifon Pérez, especialista em desenvolvimento digital do Banco Mundial e Emmanuel Vassor, consultor do Banco Mundial especialista em identidade digital.
[1] http://faq-login-unico.servicos.gov.br/en/latest/_perguntasdafaq/oquee.html