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OPINIÃO 14 de setembro de 2020

A Covid-19 ameaça os frágeis avanços na igualdade feminina – precisamos evitar esse retrocesso

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Moradora do bairro Capim Marinho, em Afuá (Pará). Foto: Marcelo Camargo/ABr. 

Há 25 anos a Organização das Nações Unidas (ONU) adotava a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, considerada uma Carta Internacional dos Direitos da Mulher, tornando histórica a 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres. Os 189 países signatários, entre os quais o Brasil, se comprometeram a implementar medidas estratégicas em 12 áreas críticas para promover a igualdade de gênero: pobreza, educação, saúde, violência, conflito armado, economia, poder e tomada de decisões, mecanismos institucionais, direitos humanos, mídia, meio ambiente e meninas. Os compromissos são referência ainda hoje para o desenvolvimento de políticas nacionais, associadas ao desenvolvimento dos Estados no plano social.

Desde então, muito se avançou no mundo para remover barreiras sistêmicas à inclusão social e econômica das mulheres. Em termos de educação e saúde, os resultados alcançados nas últimas décadas são alentadores. O número de meninas fora da escola caiu em 79 milhões nos últimos 20 anos, e hoje dois terços delas estão matriculadas no ensino secundário, em comparação com apenas um terço em 1998. Além disso, entre 1990 e 2015, a mortalidade materna no mundo caiu cerca de 44%. Houve também grande progresso em leis e políticas, historicamente discriminatórias contra mulheres e meninas  como relatado em artigo anterior, com base no relatório do Banco Mundial Mulheres, Empresas e o Direito.

O Brasil acompanhou esses avanços nos direitos e proteções à mulher, em consonância com as metas da Declaração. Desde o início dos anos 90, diversas leis foram aprovadas para diminuir desigualdades entre homens e mulheres: aumentou-se o período de licença-maternidade e introduziu-se a licença-paternidade; foram abolidas restrições ao trabalho das mulheres em certos setores e em horário noturno; proibiu-se a discriminação de gênero no trabalho; criminalizou-se o assédio sexual; e foi adotada a Lei Maria da Penha contra a violência doméstica. Apesar das conquistas, ainda estamos longe de implementar plenamente as ações pactuadas em 1995. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, o Brasil registra hoje uma das maiores lacunas de gênero da América Latina, ocupando o 22º lugar em igualdade de gênero entre 25 países da região. Em termos globais, o País está em 92º lugar dentre 153 analisados. Se mantido o ritmo atual, levaria pelo menos 59 anos para alcançar a igualdade entre homens e mulheres nas quatro áreas analisadas – saúde, educação, trabalho e política – sendo as maiores disparidades registradas nas duas últimas.

No Brasil, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho é de apenas 54%, em comparação com 74% entre os homens. Além disso, elas sofrem segregação ocupacional, com impactos diretos em sua renda. As mulheres são maioria em empregos na área de serviços (85,2%, contra 59,1%, homens), enquanto eles predominam em empregos na indústria (27,7%, homens, contra 10,6%, mulheres). Ainda que façam o mesmo trabalho que os homens, elas ganham, em média, um quarto a menos do que eles. Essa diferença é ainda mais acentuada em cargos que exigem maior escolaridade. As oportunidades econômicas das mulheres são também prejudicadas pelas responsabilidades – predominantemente atribuídas a elas – com cuidados e tarefas domésticas – a chamada “economia do cuidado”. Dados do IBGE mostram que as mulheres dedicam 18,1 horas semanais a esse tipo de trabalho não remunerado, em comparação com 10,5 gastas pelos homens, resultando, para elas, em um menor tempo disponível para a atividade produtiva.

A desigualdade no campo político – eixo também da Plataforma de Pequim – continua abissal. Com 75 mulheres dentre os 513 representantes na Câmara dos Deputados, e 11 Senadoras de um total de 81 membros do Senado, a representação feminina no Congresso Nacional, de apenas 14% no total, está longe da almejada paridade. Essa realidade se reflete também nas posições de liderança no setor privado, onde as mulheres ocupam a presidência de apenas 13% das empresas no País.

As brasileiras também enfrentam altas taxas de violência contra a mulher. O recém-lançado Atlas da Violência mostra que 4.519 mulheres foram assassinadas em 2018, um aumento de 4,2% em relação à incidência em 2008.  Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019 mostram, ainda, que se registra um caso de violência doméstica a cada dois minutos e 180 estupros por dia no País. Dados da CEPAL também apontam para o Brasil como o país com as mais altas taxas de feminicídio entre os analisados, incluindo a Argentina, México, Uruguai e Espanha.

A pandemia da COVID agravou ainda mais a situação. Como mostra a nota técnica “O Combate à Violência contra a Mulher (VCM) no Brasil em Época de COVID-19” do Banco Mundial, registrou-se, nos primeiros dois meses de confinamento, um aumento de 22% nos casos de feminicídio e de 27% nas denúncias pelo Ligue-180, em comparação ao mesmo período de 2019. E o retrocesso não se limita apenas à questão da violência.  As mulheres estão sofrendo maiores perdas de emprego, reduções salariais e aumento do tempo com afazeres domésticos do que os homens. De acordo com a PNAD Contínua, sete milhões de mulheres abandonaram o mercado de trabalho na última quinzena de março, quando começou a quarentena, dois milhões a mais do que os homens. Além da demissão, elas têm mais dificuldades de procurar trabalho e se manter no mercado, em grande parte visto o aumento nas responsabilidades com afazeres domésticos, com filhos em casa, e menores oportunidades de trabalho remoto. Nos três primeiros meses de 2020, o desemprego feminino chegou a 14,5%, ante 10,5% do masculino, a maior diferença desde 2017.

Tantos desafios precisam de uma resposta adequada. Por exemplo, leis e medidas para garantir a renda e maior proteção para as mulheres foram adotadas, dobrando e priorizando o auxílio emergencial para mulheres provedoras de família monoparental e determinando como essenciais os serviços de atendimento a mulheres em situação de violência. A flexibilidade no emprego e a experiência de home office para muitos, exigida pela quarentena, deveria significar uma participação mais ativa dos homens nas atividades domésticas – criando assim condições mais favoráveis para as mulheres. Não podemos deixar que a pandemia comprometa as conquistas dos últimos 25 anos.

Esta coluna foi escrita em colaboração com Paula Tavares, advogada especialista sênior em gênero do Banco Mundial.

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