REPORTAGEM

Brasil: a vida depois do lixão

7 de maio de 2015


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Moana Nunes, catadora de materiais recicláveis

Mariana Kaipper Ceratti / Banco Mundial

No Rio Grande do Norte, catadores se organizam e dignificam um dos ofícios mais desprezados

Por 23 anos, a vida de Ednalva Belo da Silva, 47, resumiu-se a acordar cedo e trabalhar o quanto o corpo aguentasse no lixão de Parelhas, cidade de 20.000 habitantes no interior do Nordeste brasileiro. Das montanhas de sucata ela muitas vezes tirou alimentos e roupas para si mesma e para os seis filhos, dois dos quais adotivos.

Moana Nunes, aos 19, é bem mais nova que Ednalva. Mas também carrega nas costas longos anos de labuta em um aterro sanitário: depois que o pai abandonou a família, ela começou aos 6 para ajudar a mãe. Até a quinta série, ficava meio período no lixão de Caicó, a 60km de Parelhas. Depois disso passou a trabalhar em tempo integral.

Já faz mais de um ano que Ednalva e Moana saíram dos lixões e hoje se autodenominam “catadoras de materiais recicláveis”. E isso não se trata de uma definição politicamente correta. O trabalho de fato mudou quando as prefeituras locais proibiram o trabalho nos aterros e criaram programas de coleta seletiva, assumidos pelos grupos onde as duas atuam.

Cada uma em sua cidade, hoje elas trabalham em esquema cooperativo. Vestem uniforme. Lidam apenas com lixo seco, sem restos de comida ou outros resíduos orgânicos. Têm horário de trabalho definido. Passam parte do dia na rua – coletando o material – e outra à sombra, em galpões, separando-o para depois vendê-lo para indústrias.

O novo ambiente de trabalho não tem o mau cheiro característico de um lixão, e nele a possibilidade de contrair uma doença é muito menor. No fim do mês, cada associação divide o lucro entre os participantes.

Baque financeiro

Para quem labutou tantos anos em situação desumana, as novas condições trazem inúmeras vantagens – saúde melhor, tempo para estudar –, mas também desafios.

Os catadores ganharam uma visibilidade inédita. Se antes ficavam nos arredores da cidade, agora vão às ruas buscar o material. No início, nem todos os recebiam bem. “O pessoal mandava a gente sair da calçada. Muitos me negaram um copo d’água”, conta Moana.

Outra diferença: a vida nos lixões era extremamente individualista. Quanto mais se conseguisse trabalhar, mais dinheiro os catadores faziam. “E as desavenças eram resolvidas na faca”, lembra o educador popular Joseilson Ferreira, da Cáritas, uma das entidades apoiadoras da nova organização dos catadores em Caicó e Parelhas.

“Hoje os conflitos são outros: se alguém burla as regras, tem que ser punido; se falta ao trabalho, também. Na hora da separação do material, se um separa mais e outro menos, acaba alguém dizendo que o outro não trabalha. Mas a forma de resolver os problemas também muda, passa a ser na base da conversa”, ele continua.



" No lixão, as desavenças eram resolvidas na faca "

Joseilson Ferreira

educador popular


Gerir as próprias atividades – sem esperar que um empresário ou outra pessoa de fora mande fazer – e dividir o lucro também é novidade. Curiosamente, a renda caiu, segundo Moana. Antes a jovem fazia cerca de R$ 1 mil em 15 dias, enquanto hoje consegue faturar entre R$ 600 e R$ 900. Em Parelhas, o baque financeiro foi ainda maior: os catadores tiram em média R$ 215 por mês, rendimento complementado pelo Bolsa Família e por cestas básicas distribuídas pela prefeitura.

Novos planos

“Mesmo assim, a vida da coleta seletiva não se compara à do lixão. Eu era muito isolada, agressiva, porque não aguentava a humilhação feita com os catadores. Hoje gosto de sair, conversar, me reunir com os colegas. Voltei a estudar”, comemora Ednalva.

Ela acrescenta que, com o tempo, cada vez mais a população entende a importância que os catadores têm para o meio ambiente. “Por onde passamos, não existe mais catador rasgando os sacos de lixo para pegar o que interessa e jogando o resto na calçada.”

Já a questão da renda depende de as associações de catadores ampliarem sua área de atuação. Nenhuma delas percorre as cidades por completo, e para fazê-lo dependem de infraestrutura.

Isso está mais perto de se tornar realidade por meio do projeto Rio Grande do Norte Sustentável, que o Banco Mundial financia e é implementado pelo governo do estado. Por meio dele, as associações poderão construir galpões próprios e comprar equipamentos para conseguir processar mais materiais recicláveis. Também receberão assistência técnica e treinamentos técnicos e em gestão dos seus empreendimentos.

“Os investimentos permitirão transformar essas pessoas em legítimos empreendedores socioambientais”, resume Fátima Amazonas, gerente do projeto no Banco Mundial.

O esforço das duas cidades se repete em outras partes da América Latina, como Argentina e Peru. Mas ainda é preciso fazer mais: das 15 milhões de pessoas que ganham a vida recuperando material reciclável no lixo, 4 milhões estão na América Latina, onde pelo menos 75% trabalham de forma insalubre. Estima-se que só no Brasil existam entre 500.000 e 800.000 catadores.


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