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REPORTAGEM

Do campo à cidade: as secas agora afetam a população urbana brasileira

23 de junho de 2014


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São Paulo, com 11 milhões de habitantes, vive a pior seca em 80 anos

Mariana Ceratti/Banco Mundial

Mudanças climáticas e o aumento no consumo de água ameaçam o abastecimento em algumas das principais cidades, algo inimaginável há alguns anos

Até pouco tempo atrás, no imaginário coletivo dos brasileiros, a seca ainda era um problema exclusivo da região nordeste, uma das mais pobres do país. Novelas, filmes, músicas e outras obras de arte imortalizaram as famílias que, definhando de fome e sede, deixavam seus pequenos sítios para trás. E rumavam para cidades como São Paulo, no sudeste, onde havia mais oportunidades.

Este ano, porém, o destino dos antigos migrantes passou a sofrer com secas e a possibilidade de falta d’água (a partir de novembro). Ironia do destino? Não. De fato, a maior cidade da América do Sul, com 11 milhões de habitantes, sofre desde o fim de 2013 com a pior seca em 80 anos.

Como consequência, o nível das represas que abastecem a cidade baixou a 22%. Como comparação, nessa mesma época em 2013, o sistema funcionava com 57%.

A possibilidade de racionamento de água preocupa não só a população, mas também os candidatos a governador do estado. As eleições estão marcadas para outubro.

Fenômeno inevitável

Esses problemas têm raízes bem claras: mudanças climáticas, inchaço urbano e infraestrutura insuficiente de abastecimento.

“A situação de São Paulo mostra o quanto as mudanças climáticas afetam a todas as partes do país e são inevitáveis”, avaliou recentemente o ministro da Integração Nacional, Francisco Teixeira. De fato, as secas há muito tempo deixaram de ser exclusividade do campo e, mais ainda, do Nordeste.

Na última década, por exemplo, o sul do país sofreu com estiagens mais intensas e frequentes do que o normal para a região. Este ano, até a hidrelétrica de Itaipu foi afetada: o nível do lago que a abastece se aproximou do registrado em 2001, o mais baixo da história. Já em 2005 e 2010, foi a vez da Amazônia.

Para completar as análises, vem a previsão de que o El Niño – fenômeno capaz de afetar o clima latino-americano e global – tem 90% de chances de ocorrer em 2014, aumentando a possibilidade de calor e seca em diversas partes do Brasil.



" É importante considerar que a população das grandes cidades cresce a cada ano e, com isso, o consumo de água tende a subir. Só que a infraestrutura não acompanha esse crescimento com a velocidade necessária "

Assunção Dias

Professora da Universidade de Sao Paulo


Economia ameaçada

As consequências de uma seca urbana são diferentes das ocorridas na zona rural. A possível falta d’água pode não causar uma emigração, como no Nordeste, mas preocupa a economia – ainda que não existam dados gerais sobre o impacto econômico.

O estado de São Paulo concentra 36% da produção industrial e 33,5% da renda gerada pelo setor de serviços no país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Segundo um estudo da Universidade de São Paulo (USP), o grande problema é a variabilidade climática: os períodos de secas e cheias ficaram mais intensos nas últimas oito décadas.

“Também é importante considerar que a população das grandes cidades cresce a cada ano e, com isso, o consumo de água tende a subir. Só que a infraestrutura não acompanha esse crescimento com a velocidade necessária. O resultado é o que estamos vendo hoje em São Paulo”, explicou a professora e pesquisadora Assunção Dias, autora do trabalho.

Do sertão ao litoral

As mudanças climáticas são uma realidade que Araguacy Silva (mais conhecida como Guel), líder comunitária em um bairro pobre da região metropolitana de Recife, passou a acompanhar e temer.

Quando vê na televisão as notícias sobre o possível racionamento em São Paulo, lembra-se do que viveu em 2013, quando ela e os vizinhos passaram vários dias com água liberada por no máximo duas horas. O motivo? As secas no árido interior do estado de Pernambuco, cujos efeitos chegaram até o litoral.

Por causa delas, o nível da barragem de Pirapama, inaugurada nesse mesmo ano – justamente para acabar com a falta d’água de milhares de pessoas –, chegou a somente 13%, prolongando o sofrimento da população.

No bairro onde Guel mora, o jeito foi chamar caminhões-pipa, guardar o líquido como fosse possível (nem todos dispunham de tanques ou caixas d’água) e reusá-lo. “Sabia que estava faltando água no interior, mas não fazia ideia de que esse problema podia nos afetar”, comentou.

Na opinião dela, a crise em São Paulo deveria ser o ponto de partida para que governo e especialistas estudem não só o clima do sertão, mas também o das grandes cidades, com mais cuidado. “Se vivemos um problema no ano passado, quais as chances de ele acontecer de novo? E como vamos nos preparar?”, preocupa-se.

O “relógio” das secas

Parte da solução está na criação do primeiro monitor brasileiro de secas, um projeto apoiado pelo Banco Mundial que envolve uma série de instituições federais e dos estados do Nordeste que avaliam a seca em suas múltiplas dimensões: meteorológica, hidrológica, assim como seus impactos sobre os vários setores da economia.

O monitor tem o objetivo de produzir um mapa (mensal ou quinzenal) que descreve o estado atual da seca em todo o Nordeste, integrando dados que hoje são coletados e analisados separadamente por essas mesmas instituições. A metodologia, facilmente replicável para outras partes do Brasil, está sendo desenvolvida e deverá ser posta em prática a partir de janeiro de 2015.

“O principal desafio que o Brasil enfrenta agora é aproveitar esse momento crucial e a oportunidade de agir de forma ousada, para avançar em direção a uma gestão e um planejamento com ações proativas, que minimizem os efeitos das secas no país”, diz Erwin De Nys, especialista sênior em recursos hídricos do Banco Mundial.

“As secas têm diferentes fases ou graus de severidade; é importante para a sociedade saber se estamos passando por uma seca moderada ou severa; cada fase será representada como o quadrante de um relógio”, compara Francisco de Assis de Sousa Filho, professor da Universidade Federal do Ceará. “E o monitor de secas funcionará como o ponteiro, indicando precisamente a fase em que se está”.

É uma experiência que já teve sucesso em cidades como Madri, por exemplo, e gradualmente está sendo adotada em outras partes do mundo, como o México.



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