REPORTAGEM

As ‘rodovias’ aquáticas abrem seu caminho pela América Latina

29 de abril de 2014


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Mural às margens do Rio São Francisco, em Juazeiro (Bahia)

Mariana Ceratti / Banco Mundial

DESTAQUES DO ARTIGO
  • Um plano ambicioso visa integrar os rios às redes de transporte no Brasil e outros países

Imagine uma pista de milhares de quilômetros sem buracos, pedágios ou engarrafamentos, conectando três grandes regiões de um dos maiores países do mundo. Uma via que pudesse ser igualmente utilizada para transporte de passageiros e de carga. E que, além disso, fosse totalmente sustentável.

Agora pense que essa via já existe e que, nos últimos 50 anos, vem sendo cada vez menos usada. E que, no lugar dela, a população use estradas perigosas, em más condições, cheias de motoristas exaustos de dirigir por horas.

E, para acrescentar um detalhe: tudo isso ocorre em uma das regiões mais pobres de um país onde se gastam US$ 31,6 bilhões por ano em transporte, cifra que representa quase 40% do custo nacional de logística.

Não é a Rússia nem a China: é o Brasil.

Como resultado de uma estratégia, adotada nos anos 1960, de priorizar as rodovias no desenvolvimento do interior, o Brasil apresenta hoje 214.000 quilômetros de rodovias pavimentadas e 1,3 milhão de quilômetros de vias não pavimentadas. As ferrovias somam 30.000 quilômetros. Já de hidrovias, são apenas 13.000 quilômetros.

“Essa foi uma escolha feita quando o Brasil ainda não era a potência agrícola de hoje”, lembra Júlio Cézar Busato, presidente da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia, no nordeste brasileiro.

Mas agora volta a ganhar corpo a ideia de usar os enormes rios brasileiros para levar passageiros e carga, a uma fração do custo do transporte por terra e com a possibilidade de integrá-los a sistemas já existentes.

Um dos rios onde essa filosofia começará a ser colocada em prática é justamente a enorme via – sem pedágios nem engarrafamentos – descrita no começo deste texto: o Rio São Francisco, no nordeste brasileiro. Ele se estende por 2.830 km, dos quais 1.300 são navegáveis.

Quem depende do Velho Chico para sobreviver aposta em uma iniciativa capaz de inspirar o resto do país e a América Latina: recuperar a navegabilidade do rio.

Duas das principais cidades banhadas pelo rio, as vizinhas Juazeiro e Petrolina, mostram que a missão não será fácil. Na primeira cidade, chama a atenção um porto que jamais foi usado. Na outra, o porto funciona, mas apresenta cada vez mais dificuldades para a Icofort, única empresa que ainda transporta produtos no local.

Estações ferroviárias decadentes e trilhos cobertos por grama completam o cenário em ambas as cidades.

“Quando não havia estradas, esse rio era o único elo entre muitas populações locais”, lembra o comandante Bartolomeu Borges, filho, neto e bisneto de antigos condutores. “Hoje a navegação ficou muito difícil.”


" Por décadas, as instituições relacionadas a transportes se encarregavam unicamente de construir e inaugurar rodovias; agora, veem a necessidade de integrá-las com estradas de ferro e hidrovias "

Lincoln Flor

Especialista em transportes no Banco Mundial

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Pesca no Rio São Francisco, próximo ao porto de Petrolina (Pernambuco)

Mariana Ceratti / Banco Mundial

“Apesar de a logística associada ao transporte de grãos ter uma vocação fluvial, o volume de carga transportada pela hidrovia do São Francisco é modesto em comparação com o potencial de crescimento da agricultura local. O oeste da Bahia produziu 6,7 milhões de toneladas na safra 2010-11, mas apenas 0,7% disso passou pelo São Francisco”, segundo análise feita por consultores do Banco Mundial.

Secas e assoreamentos fizeram com que, nas últimas décadas, o rio gradualmente perdesse a capacidade de receber navios de carga.

“Na safra 2012/2013, despachamos 51.000 toneladas de caroço de algodão; na 2013/2014, foram 23.000”, compara Marcelo Teixeira, diretor de logística da Icofort.

Por precaução, enquanto avalia as condições do rio para a próxima safra, a empresa agora se organiza para transportar o produto (usado nas indústrias eletrônica, têxtil e de celulose) por terra.

É uma tarefa complexa: 63,2% das estradas do Nordeste foram classificadas como regulares, ruins ou péssimas, segundo estudo feito pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) em 2011. Fora isso, um terço dos acidentes ocorridos na região entre 2007 e 2011 envolveu veículos de carga. Os assaltos também são frequentes.

Por isso, a empresa e outras partes interessadas acompanham a elaboração de um plano de ação que está sendo preparado pelo Banco Mundial e pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), entre outros parceiros. O documento deve estar pronto em junho.

“Trabalhos como esse mostram que há uma mudança de mentalidade ocorrendo não só no Brasil, mas na América Latina: por décadas, as instituições relacionadas a transportes se encarregavam unicamente de construir e inaugurar rodovias; agora, veem a necessidade de integrá-las com estradas de ferro e hidrovias”, explica o economista de transportes Lincoln Flor, do Banco Mundial.

Ainda não é possível prever em números o impacto futuro dessas ações, embora especialistas do governo, do setor privado e de organismos internacionais concordem sobre a necessidade de agir rapidamente – não só no São Francisco, mas nos demais que cortam o Brasil.

O país ficou em 65º lugar no recente estudo Índice de Performance Logística 2014 (do Banco Mundial), atrás de países como Chile, México e Índia, e a infraestrutura foi apontada como um dos motivos para esse desempenho.



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